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Questões empíricas e teóricas sobre a redução da maioridade penal – por Samuel Milhazes
Foto: Divulgação

Tramitam no Congresso Propostas de Emenda à Constituição que propõem a redução da maioridade penal de dezoito para dezesseis anos de idade, perante as quais se questiona – por se tratar de direitos e garantias individuais – pretensa violação ao status constitucional de cláusula pétrea conferido ao texto do artigo 228 da Constituição Federal que estabelece: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”.

Dentre as referidas propostas de alteração constitucional, destaca-se a do Senador José Roberto Arruda, que acrescenta condição – mediante uma aferição do amadurecimento emocional e intelectual do adolescente infrator –, prevista em lei, para atestar a inimputabilidade do adolescente. Essa proposta parte de uma perspectiva multidisciplinar dentro do trinômio indivíduo-crime-pena, inspirada no modelo alemão, mas com os elementos conjecturais desprezados, sem a reconhecida psiquiatria forense alemã, importando teorias para uma realidade distinta à brasileira, indiferentes aos fatores políticos, culturais e sociais aos quais estamos submetidos enquanto país em desenvolvimento.

Outro argumento daqueles que se posicionam favoravelmente à redução da maioridade penal para 16 anos, bastante recorrente, condiz com a afirmativa de Borring de que existe relação da violência com o progresso do mundo e o amadurecimento mais precoce das crianças, sendo cabível a redução da maioridade penal.

Tal relação de progresso do mundo com amadurecimento precoce de adolescentes, como acredita Borring, não se justifica, pelo menos não empiricamente. A experiência nos permite visualizar a existência de um processo de emburrecimento dessa faixa etária de 16 a 18 anos, quiçá consequência de uma superproteção existente na relação de pais a filhos, resultante provavelmente dos conhecidos problemas do mundo moderno, demasiado objeto de estudo da psicologia. São problemas, talvez, decorrentes da “modernidade tardia” (na dicção do sociólogo David Garland), que nos enchem de culpa, aflições e paranoias diversas. Por certo, nossos pais foram indivíduos mais amadurecidos, mais comprometidos com suas obrigações domésticas e sociais. Inegavelmente, dedicaram-se mais à literatura e à boa música. Tiveram, ainda adolescentes, uma compreensão e um sentimento mais aguçados sobre os conceitos de honra, propriedade e vida, de modo que foram indivíduos menos propensos às transgressões das regras sociais. Enfim, reportando-nos aos adolescentes de gerações anteriores, logo percebemos a inexistência do alegado amadurecimento precoce dos adolescentes hodiernos.

No senso-comum, também impera uma necessidade de aplicação das regras punitivas dos adultos aos adolescentes que cometem crime, independentemente das consequências já reconhecidas, como aquela que nos alerta sobra a grande chance de reincidências desses adolescentes quando submetidos a confinamento nos presídios comuns. Soma-se a isso outra ideia bastante disseminada pelo senso-comum, aquela em que se acredita que uma resposta penal mais rigorosa coibirá a prática de infrações praticadas por adolescentes, porquanto apostam no sentimento de impunidade como um grande incentivador à delinquência juvenil. Em parte, assistem razão.

Dados e levantamentos do IPEA, em 2002, indicaram um percentual de 2,88% quanto à participação de jovens em infrações, mas não se tem notícias de um mapeamento da criminalidade juvenil mais recente realizado pelo governo. Não há fonte oficial segura que indique corretamente qual a porcentagem de crimes cometidos por adolescentes, contudo pesquisadores e estudiosos do assunto, em teses científicas diversas, para obtenção de títulos, têm frequentemente levantado dados, por meio de prontuários de adolescentes internados em instituições, que revelam uma correlação positiva entre gravidade dos delitos e idade, ou seja, a idade é um fator que varia positivamente em relação à gravidade do delito, estabelecendo uma variável em que, quanto maior a idade, mais grave o delito. Estima-se, com base ainda nesses mesmos levantamentos pessoais de teses, que cerca de 10% de todos os crimes cometidos no Brasil têm a participação de adolescentes. Um percentual modesto, mas bem acima dos 2,88% do IPEA em 2002. Grande parte desse percentual de 10% deve-se às infrações dos adolescentes relacionadas ao tráfico de drogas e à famigerada e desastrosa política de combate às drogas.

Recentemente, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara aprovou, por 42 votos a favor e 17 contra, a admissibilidade da PEC nº 171/1993, que propõe a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. A essa proposta estão apensas outras 37 proposições que tratam sobre o mesmo tema.  No aspecto jurídico, todas elas são passíveis de ter a sua inconstitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal; no aspecto acadêmico, já não reconhecida pelos renomados estudiosos do tema. 

Estando atualmente em discussão a tentativa de reduzir a maioridade penal, é importante que sejam revistas as considerações contrárias defendidas pelos profissionais que lidam com a questão no dia a dia. A tese do ser humano em desenvolvimento embasa a posição dos principais defensores do uso de medidas socioeducativas em lugar de medidas punitivas.

Cientistas comportamentais têm enfatizado a correlação entre práticas parentais e desenvolvimento de comportamento antissocial. Estudos recentes apontam que práticas parentais negativas propiciam o aparecimento de comportamentos antissociais ou infratores, além de indicarem uma correlação positiva entre as práticas parentais positivas e habilidades sociais e correlação negativa entre práticas parentais positivas e depressão e estresse. Essas práticas negativas, por um lado, são, grosso modo, caracterizadas pelo uso da punição física como forma de disciplinar, pela negligência, que pode ser afetiva, econômica, educacional ou da saúde do filho, pelos abusos psicológicos, em que as ameaças de abandono e xingamentos fazem a rotina das relações familiares e pelos abusos sexuais que estão ligados ao histórico de vida dos infratores de maior periculosidade. Infelizmente, encontra-se a ausência das práticas parentais positivas nas famílias em risco social, que são aquelas mediadas pelo afeto, pela empatia, pelo amor, pelo acompanhamento cuidadoso, em que os pais ensinam o que é certo e o que é errado, praticam as virtudes e fornecem exemplos com coerência, conforme apontam as psicólogas Paula Inez Cunha, Raphaella Ropelato e Marina Pires Alves, em estudo intitulado “A redução da maioridade penal: questões teóricas e empíricas”.

Destacam, ainda, as autoras acima referidas que, para Formiga e Gouveia, quando os adolescentes não se sentem envolvidos, comprometidos ou são, mesmo, alijados da sociedade convencional, da escola, da religião, não serão capazes de internalizar os valores ou padrões convencionais e de se comportar segundo as normas sociais vigentes. Contrariamente, quando estes assumem a importância dos papéis convencionais, são encorajados a apresentarem comportamentos convencionais e a se oporem a condutas desviantes, sem desprezarem a existência de uma predisposição biológica à delinquência.

Outro fator contrário à redução da maioridade penal, bastante debatido, é o público alvo que a norma inegavelmente encarceraria. Como explica Loïc Wacquant, no neoliberalismo, as políticas sociais são desmontadas e as políticas penais fortalecidas, submetendo o proletariado a uma dupla regulação que envolve o setor assistencial e penal. Além disso, enfatiza que a polícia, os tribunais e as prisões (o que chamamos de Sistemas de Segurança e Justiça) são instituições de controle voltadas principalmente para as categorias de sujeitos em situação de vulnerabilidade social.

O que Wacquant explica encontra sua constatação prática na realidade prisional brasileira, de maioria pobre. Lado outro, o estereótipo que associa pobreza com criminalidade encontra-se impregnado inclusive em decisões judiciais, as quais certamente continuarão valendo-se da conceituação elástica de “garantia da ordem pública” como justificativa para prisões de adolescentes, mormente quanto ao delito de tráfico, no qual juízes frequentemente desenvolvem um discurso gritantemente penalista, dando demasiado peso a esses atos infracionais. Tais discursos “ideologizados” mostram rotineiramente um moralismo exacerbado e de extrema ausência de historicidade para a compreensão das raízes da criminalidade como um fenômeno que deve ser entendido a partir da contextualização sócio histórica. Com efeito, teremos certamente um problema carcerário de proporções irrecuperáveis, em que o Estado, mais uma vez, “resolverá” o problema dos adolescentes infratores de estratos sociais mais baixos, mantendo-os reclusos, indiferente aos efeitos nefastos de um confinamento humano prematuro e de uma política criminal obtusa, inconsequente.

Por tais razões, o discurso contrário à redução da maioridade penal enxerga como alternativa à violência juvenil a ampliação das atividades do sistema educacional, de modo que possam acolher e atender adolescentes em situação de risco, dando-lhes reforço escolar, atividades lúdicas e culturais, além de apoio emocional capaz de aumentar sua autoestima, o que inibiria seu ingresso em atividades infratoras. Os atendimentos às famílias em situação de risco, que poderão ser em nível preventivo (orientação), remediativo (treinamento) ou terapêutico (terapia) seriam outra medida de prevenção baseada em estudo científico, corroboradas pela psicologia, criminologia, sociologia e demais ciências correlatas. É uníssono o desprezo científico que os estudiosos do assunto nutrem pela proposta de redução da maioridade penal.

O nosso Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece uma forma alternativa e pedagógica de lidar com adolescentes autores de ato infracional, respeitando as principais teorias psicológicas que estudam o comportamento antissocial. O simples aprisionamento não possui caráter educativo. Isso significa que apenas encarcerar não é medida capaz de evitar que o adolescente pratique crimes futuros e crimes mais graves.

Ainda que se encare a questão sob a ótica do retributivismo penal – em que a pena, cuja única tarefa é retribuir o mal do crime com o mal da pena, é o fim em si mesma –, não poderíamos descartar que o próprio ECA se presta a tal função, porém mesclando tentativas preventivas, com as quais a pena cumpriria a tarefa político-criminal de tentar controlar os comportamentos para a frente, evitando tanto a renitência quanto a possibilidade de os destinatários da lei penal virem a delinquir-se.  Sob esse prisma, o investimento e a reestruturação das instituições criadas para executar as medidas socioeducativas do ECA poderão ser o caminho para o atendimento a duas demandas sociais: o adolescente é punido ao ser internado e retirado do meio social e, paralelamente, é submetido a programas que privilegiem sua reinserção social por meio de atividades pedagógicas e de preparação para o trabalho. Tais medidas, obviamente, necessitam de apoio governamental imediato, essa deveria ser a discussão, haja vista que a proposta de redução da maioridade penal é sobremaneira insustentável, seja em análises teóricas, seja em análises empíricas.

A pauta brasileira no que tange à política criminal deveria ser a reivindicação de uma imediata reformulação do sistema de internação de adolescentes em conflito com uma Lei que permita o pleno funcionamento das medidas socioeducativas preconizadas pelo ECA. Mudar a legislação para que adolescentes de 16 a 18 anos cumpram penas no sistema prisional sem perspectiva de receber atenção psicossocial adequada não é a solução e produzirá um verdadeiro estrago em termos civilizatórios, pois certamente não saberemos lidar com os problemas advindos da redução da maioridade penal e das novas relações sócias dela decorrentes. A redução da maioridade penal é, sobretudo e resumidamente, uma maneira fraudulenta de se retirarem direitos e garantias individuais dos adolescentes e o faz de maneira injusta e covarde, pois adolescentes não possuem os recursos necessárias para defender os seus direitos.

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